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A psicoterapia e o xadrez

A psicoterapia e o xadrez

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Rodrigo Coletty
Psicólogo

25 de maio de 2022

Complexo e intricado jogo de tabuleiro, que é muito mais do que um jogo e diz respeito a mais coisas do que simplesmente a possibilidade de se vencer. 

Por mais que no xadrez cada peça esteja restrita e sobrecodificada a um valor de referência e função específicos, os quais pouco se modificam, como, por exemplo, o cavalo que só anda em l ou a torre que só cobre horizontais, no fervor do meio jogo, quando exércitos se digladiam, tudo pode se modificar. Há sempre um tesouro escondido em alguma posição aparentemente neutra ou empatada, um movimento tático, um sacrifício de qualidade ou mesmo um ganho de posição.

É essa a potência que o xadrez traz, de constante desconstrução e desindividuação, em que os valores de referência e identidades de cada peça são relativos e se modificam de acordo com o jogo, afinal, um peão pode dar mate e uma dama pode não valer nada, a depender da dinâmica e posicionamento em que o jogo se encontra.

E assim como no xadrez, na vida também temos valores de referência e identidade, em que podemos tanto nos aprisionar, pouco nos modificando, tal qual um jogo de xadrez extremamente teórico e burocrático, quanto nos aventurarmos na potência das mutações subjetivas e micro diferenciações, que podemos estabelecer a cada movimento do desejo e lance da vida.

Nesse sentido, a psicoterapia é como um jogo de xadrez, na medida em que nos convida ao exercício do pensamento, exercício este que nos possibilita rever e muitas vezes modificar os valores e posições que estabelecemos, bem como entender onde se encontra nosso desejo e a maneira como nos relacionamos com a vida. 

E tal qual uma bela partida de xadrez, em que a função e a importância de cada peça pode se diluir na dinâmica e fluidez do jogo, nesse processo do pensamento de nos percebermos e pensarmos sobre nós mesmos, a mesma coisa pode acontecer, de modo que opiniões antes fixas e imutáveis se tornam mais frouxas e abertas a reflexões, relações com amigos e familiares passam a ser repensadas e relativizadas, bem como a maneira como nos vemos também é colocada em xeque.

Em xeque não só no modo de dizer mas também enquanto uma ameaça aquilo que temos como certo, e a abertura para novas possibilidades de mutações e revoluções do desejo.

Importante lembrar que em uma psicoterapia, a ideia não é buscar um fim em si para as queixas e demandas que se apresentam, de forma planejada, tal qual um projeto de dissolução do sofrimento, mas sim se estabelecer um processo de diferenciação e um plano de consistência em que a cada momento a pessoa possa se transmutar de forma que essa,  idealizada, dissolução ou apaziguamento da dor, aconteça de forma fluida e sutil, sendo que muitas vezes esse processo não se dá da forma como planejamos e acaba nos surpreendendo positivamente. Afinal, nossa vida também pode nos esconder tesouros.

Por fim, diz-se que o objetivo do xadrez é o xeque-mate, mas quem disse que é o mais importante?

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